ECONOMIA POPULAR SOLIDÁRIA:
Possibilidades e Limites
Paulo
César Carbonari
O conceito de economia popular solidária introduz uma novidade na compreensão da economia e outra na compreensão da política. Explico. Falar de economia popular solidária é ressignificar a própria economia no sentido de recuperar sua dimensão ética – flagrantemente negada pelas posições neo-clássicas de matriz liberal e de alguma forma também pelas posições marxistas ortodoxas. Mas não só, é entender o lugar da economia no processo de transformação social como exercício político, um novo lugar.
Os
adjetivos popular e solidária cumprem um papel substantivo, reorientando o
sentido do substantivo que qualificam.
Ao
dizer economia popular podemos apenas estar nos referindo à chamada economia de
sobrevivência, marginal à economia de mercado. Prefiro entender popular no
sentido substantivo de uma economia centrada na busca de condições de satisfação
das necessidades – sempre novas – dos seres humanos, na perspectiva do bem
viver de todos e para todos. A serviço, portanto, do homem – invertendo a
lógica fetichista da economia capitalista.
O solidária
dá o caráter prático e recupera a igualdade como condição do exercício da
liberdade, no sentido de que a realização da solidariedade implica a criação de
condições históricas de igualdade no exercício da liberdade. A plenitude da
liberdade, neste sentido, não se dá pela livre iniciativa individual, mas na
liberdade de iniciativa solidária, como exercício público de objetivos, que
deve levar em conta interesses individuais, não privatistas, passíves de ser
tornados coletivos. É o exercício de redução da esfera privada e privatista
pela construção de espaços públicos capazes de subsumi-la na perspectiva
coletiva. Portanto, a economia popular solidária subverte o conceito
funcionalista de economia e recoloca a economia no seio do mundo da vida, do
mundo das relações humanas, desfazendo-a como sistema colonizador e sufocador
de potencialidades. O mercado deixa de ser o agente obscuro que determina as
relações sociais. Recupera-se a idéia de troca como a essência das relações
econômicas – em contraposição à idéia de mercado. A economia solidária,
portanto, nega o mercado como mão invisível, e afirma relações de troca.
Em
termos políticos, na perspectiva de que a política é o exercício de condições
para a transformação social em vista de uma vida centrada no bem viver, a
economia popular solidária insere a novidade de que o exercício de novas
relações produtivas não será consequência da reorganização do Estado,
particularmente da burocracia governamental. Antes, implica centralmente uma
profunda aposta na organização da sociedade civil. O significado disso na
matriz revolucionária é fundamental. Isto porque, o processo de transformação
da economia capitalista passa antes pela organização dos produtores e
consumidores, do que pelo assalto ao aparelho burocrático do Estado que teria o
papel de reorientar o mercado a favor deles – tese típica da ortodoxia
marxista. A transformação das relações de produção passa pela organização dos
produtores e consumidores, desde já, numa nova forma de relações de produção a
ser exercida em novas relações de produção. Isto não significa enfraquecer a
necessária resistência e crítica contundente ao modelo e à prática hegemônica.
Não se trata de gerar uma dicotomia entre os trabalhadores que abdicam da greve
para administrar um empreendimento econômico e os trabalhadores que fazem greve
para derrubar os capitalistas. Trata-se de entender que ambas as ações são
complementares e estrategicamente substantivas no sentido da construção de
novas relações produtivas.
O
central, portanto, em termos políticos, está em apostar na organização dos
produtores e consumidores, no aperfeiçoamento da organização da sociedade civil
– não para sobreviver dentro do sistema ou para arranjar o que fazer aos que já
não tem lugar numa economia automatizada – para, a partir deles (os excluídos
do sistema), gerar novas relações produtivas, revolucionárias. O revolucionário
da organização da economia popular solidária está em mexer na estrutura
produtiva, contrapondo-se ao sistema capitalista pela construção no seu seio de
condições para sua superação pela organização social dos produtores e
consumidores – de alguma forma recupera-se aqui todo o sentido dos socialistas
utópicos, sem entendê-los ou depreciá-los em nome do socialismo científico,
antes, complementando-os mutuamente. A imagem que me vem à mente é a do esforço
de organização das comunas e dos ofícios no seio do feudalismo, como
potencialização política da séculos depois revolução francesa. A revolução é
econômica e política ao mesmo tempo – contra todos os que acreditam que antes
precisa ser política para depois ser econômica.
Neste
contexto, merece especial atenção o lugar do Estado. Ele passa a ter um papel
fundamental. Não no sentido de planejar a atividade econômica, mas no sentido
de aportar condições para que a auto-organização livre dos produtores e
consumidores possa ser efetivada. Supera-se a idéia de Estado como burocracia
administrativa em nome da idéia de Estado como espaço público de enfrentamento
de interesses privados e privatistas, palco de busca de soluções públicas,
coletivas, que venham para reduzir a voracidade individualista em nome da
satisfação de todos e de cada um. Aliás, sem que a sociedade esteja organizada
de maneira autônoma, qualquer ação do Estado na perspectiva da economia popular
solidária deporá contra ela, destruirá suas bases pelo paternalismo – sobre
isso não sobram exemplos para analisar e que em virtude da exiguidade do tempo
não podemos considerar. Neste sentido, o Estado, antes de ser burocracia é
sociedade organizada. À brocracia, neste contexto, cabe oferecer suporte à
auto-organização, nunca patrociná-la ou substituí-la.
Um
projeto de desenvolvimento popular e solidário, que antes de mais nada precisa
ser autosustentável, é tarefa, portanto, de toda a sociedade, particularmente
da sociedade organizada nesta perspectiva. A burocracia estatal, neste sentido
tem um papel complementar e emulador. Não cabe a este ou àquele governo fazer a
transformação social, cabe aos produtores e consumidores, aos agentes sociais,
à cidadania organizada, promovê-la, pela construção, desde já, de novas
relações, de relações populares e solidárias. A aposta está na criatividade que
emerge da participação popular. Na idéia de que a garantia dos direitos é
exercício coletivo da cidadania, na criação de condições históricas
transformadoras do status quo, em vista do bem viver. Daí que, a economia
popular solidária é o exercício de construção de uma nova cultura que suplante
o padrão individualista e consumista que grassa neste fin de siécle. Como dizia
Che Guevara: "Ser solidário é ser humano". É compartilhar qualquer
injustiça, a qualquer ser humano, em qualquer lugar. É compartilhar o exercício
paciente e permanente de construção de novas relações que sejam capazes de
colocar o ser humano como fim, nunca como meio. É compartilhar a utopia de um
mundo mais humano como horizonte ético, mobilizador da ação presente, e como
construção presente de um horizonte estética e politicamente mais humano.
Este
é o desafio que está colocado para quem não vê na economia popular solidária
mais uma moda empolgante, mas uma possibilidade real, histórica de
transformação das relações sociais.
O que é Economia Solidária?
Economia
Solidária é um jeito diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que é
preciso para viver. Sem explorar os outros, sem querer levar vantagem, sem
destruir o ambiente. Cooperando, fortalecendo o grupo, cada um pensando no bem
de todos e no próprio bem.
A
economia solidária vem se apresentando, nos últimos anos, como inovadora
alternativa de geração de trabalho e renda e uma resposta a favor da inclusão
social. Compreende uma diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas
sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas
autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de
produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio
justo e consumo solidário.
Nesse
sentido, compreende-se por economia solidária o conjunto de atividades
econômicas de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito, organizadas
sob a forma de autogestão. Considerando essa concepção, a Economia Solidária
possui as seguintes características:
Cooperação:
existência de interesses e objetivos comuns, a união dos esforços e
capacidades, a propriedade coletiva de bens, a partilha dos resultados e a
responsabilidade solidária. Envolve diversos tipos de organização coletiva:
empresas autogestionárias ou recuperadas (assumida por trabalhadores);
associações comunitárias de produção; redes de produção, comercialização e
consumo; grupos informais produtivos de segmentos específicos (mulheres, jovens
etc.); clubes de trocas etc. Na maioria dos casos, essas organizações coletivas
agregam um conjunto grande de atividades individuais e familiares.
Autogestão:
os/as participantes das organizações exercitam as práticas participativas de
autogestão dos processos de trabalho, das definições estratégicas e cotidianas
dos empreendimentos, da direção e coordenação das ações nos seus diversos graus
e interesses, etc. Os apoios externos, de assistência técnica e gerencial, de
capacitação e assessoria, não devem substituir nem impedir o protagonismo dos
verdadeiros sujeitos da ação.
Dimensão
Econômica: é uma das bases de motivação da agregação de esforços e recursos
pessoais e de outras organizações para produção, beneficiamento, crédito,
comercialização e consumo. Envolve o conjunto de elementos de viabilidade
econômica, permeados por critérios de eficácia e efetividade, ao lado dos
aspectos culturais, ambientais e sociais.
Solidariedade:
O caráter de solidariedade nos empreendimentos é expresso em diferentes
dimensões: na justa distribuição dos resultados alcançados; nas oportunidades
que levam ao desenvolvimento de capacidades e da melhoria das condições de vida
dos participantes; no compromisso com um meio ambiente saudável; nas relações
que se estabelecem com a comunidade local; na participação ativa nos processos
de desenvolvimento sustentável de base territorial, regional e nacional; nas
relações com os outros movimentos sociais e populares de caráter emancipatório;
na preocupação com o bem estar dos trabalhadores e consumidores; e no respeito
aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.
Considerando
essas características, a economia solidária aponta para uma nova lógica de
desenvolvimento sustentável com geração de trabalho e distribuição de renda,
mediante um crescimento econômico com proteção dos ecossistemas. Seus
resultados econômicos, políticos e culturais são compartilhados pelos
participantes, sem distinção de gênero, idade e raça. Implica na reversão da
lógica capitalista ao se opor à exploração do trabalho e dos recursos naturais,
considerando o ser humano na sua integralidade como sujeito e finalidade da
atividade econômica.
http://www.ifil.org/rcs/biblioteca/Carbonari.htm
Notas:
1
Participação no Seminário Regional Passo Fundo de Trabalho e Economia Popular e
Solidária, realizado em Passo Fundo, 01 e 02 de dezembro de 1999. Painel e
Debate: A economia solidária: o que é, quais as suas possibilidades e os seus
limites em economias periféricas – o caso do Brasil. Estratégias para a
consolidação da economia popular solidária no projeto de desenvolvimento do
Estado do RS. Trata-se de versão preliminar.
2
Mestrando em Filosofia (UFG-GO); professor de filosofia no IFIBE, Passo Fundo;
educador popular junto a ONGs e Movimentos Sociais Populares; militante do
MNDH; assessor do dep. fed. Padre Roque (PT-PR)
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Bibliografia
Consultada
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HINKELAMMERT, F. Crítica da Razão Utópica. São Paulo: Paulinas, 1984.
2. ____________.
As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983.
3.
MANCE, Euclides A. A revolução das redes. Petrópolis: Vozes (no prelo).
4.
OLIVEIRA, M. A. de. Ética e Economia. São Paulo: Ática, 1996.
5.
SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
6.
SINGER, Paul. Globalização e Desemprego. São Paulo: Contexto, 1998.
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